domingo, 26 de setembro de 2010

Navio-museu Santo André


Alegria na chegada; a tristeza vinha depois

O navio-museu “Santo André” conduz-me sempre a recordações indeléveis, com saudades e memórias de mau pai, Armando Lourenço Martins, mais conhecido por Armando Grilo, contra-mestre do arrastão que foi campeão das pescas durante muito tempo. Fazia duas viagens por ano e o meu pai só podia estar connosco em curtas férias, ainda por cima envolvido nos trabalhos de preparação para novas viagens.
A partida para mais uma viagem era dia de luto em casa, com a nossa mãe chorosa e eu e o meu irmão calados. Não tínhamos palavras para dizer. E a vida continuava, com as saudades presentes, atenuadas pela ânsia da chegada, só possível no tempo próprio e com boa carga de bacalhau.
Com a partida do banco, rumo a casa, vinha a alegria, e os preparativos da recepção começavam, aumentando exponencialmente, para que o pai encontrasse tudo direitinho. Casa, quintal, as coisas pessoais de cada um arrumadinhas, que os avisos da mãe não paravam, lembrando que o pai não gostaria disto e daquilo.
O dia da chegada era festa. Corrida para a Barra, olhando sofregamente o arrastão a entrar, com os tripulantes a acenar com força, bonés no ar, como que a dizer «estou aqui!». Nova corrida para o porto de pesca longínqua, junto à EPA (Empresa de Pesca de Aveiro), empresa do “Santo André”. E nós ansiosos para entrar no navio.


Cheiro a pão a sair do forno que ainda hoje me não sai do olfacto. Manteiga no pão quente de sabor inexplicável. Ou bifanas mesmo rijas, que sabiam bem como poucas. Olhos postos no pai que no seu camarote nos mimava e nos perguntava pela mãe que esperava no cais. Preparar a mala para abandonar o navio. Lembranças escondidas por aqui e por ali, embrulhadas na roupa ou no corpo, como um tecido fino para um vestido de que a minha mãe muito gostou. Uma garrafa de Whisky para um amigo compreensivo, com a pergunta sacramental: «posso sair, senhor guarda?» E um obrigado sem esperar pela autorização.
E lá regressávamos a casa, a pé, que era perto, mas com muita demora, que os amigos gostavam de saber pormenores da viagem. O meu pai não se cansava de contar os temporais, as boas pescas, os sofrimentos de alguns. E a promessa de que qualquer dia deixaria a vida do mar, para onde fora aos 14 anos.
E em casa, à volta da mala, lá esperávamos pelas lembranças de Saint John's. Era a alegria maior. A tristeza chegaria semanas depois.

Fernando Martins
"Gafanha da Nazaré: 100 anos de vida"

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