quinta-feira, 5 de junho de 2008

O 13 de Maio pelo rádio

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Teria os meus seis anos (1944) quando vi e ouvi, pela primeira vez, um rádio. Na altura chamavam-lhe telefonia. Foi na casa do tio João. Num dia 13 de Maio, para ouvir as cerimónias de Fátima. Mulheres e filhos sentados no chão, numa sala onde a telefonia era rainha, ali se ouvia o que decorria no Santuário de Fátima, com a missa celebrada em latim. Um padre fazia os comentários e um locutor, como então se dizia, dava explicações do que estava a acontecer. O tio João, sentado ao lado do rádio, de quando em vez acertava a sintonia. Pelos vistos, as ondas sonoras desviavam-se do aparelho e era preciso estar atento, para não se perder pitada do que lá longe acontecia. Na sala, ao lado das pessoas sentadas no chão, estavam a mulher e as filhas, estas sempre atentas ao que se passava e à espera de mais alguém que viesse para ouvir a transmissão de Fátima. Tenho presente, ainda hoje, o silêncio religioso que havia na sala. Mulheres de xaile preto e de lenço na cabeça rezavam com devoção, respondendo ao celebrante com o latim macarrónico que se havia decorado desde a infância. Ao Dominus Vobiscum respondia-se Et cum spirito tuo. O Amem foi a primeira palavra em latim que decorei. Muitas outras ao longo da vida papagueei, quantas vezes sem conhecer o seu verdadeiro significado. Depois vinha a homilia, com o tio João a repetir as admoestações do pregador, para que ninguém perdesse palavra do que chegava de Fátima. Mais comovente era a bênção dos doentes. Nesse momento, mulheres choraram e também eu me comovia, com os apelos lançados, via rádio, ao Deus todo-poderoso, para que curasse os doentinhos, que ali tinham ido à procura de um milagre para os seus males físicos. Dessa vez, como doutras, nunca ouvi a proclamação de um milagre. Mas acredito que tenham acontecido. A fé move montanhas. Hoje, tantos anos depois destes acontecimentos, reconheço que estas idas à casa do tio João para ouvir as cerimónias de Fátima me marcaram sobremaneira. Que me lembre, isto não acontecia todos os meses. Mais em Maio, como mês mágico e de muita devoção mariana nas Gafanhas. Nesse mês havia à noite, na igreja matriz, o chamado mês de Maria, dedicado a Nossa Senhora. A igreja enchia-se sempre. Mais de mulheres e de crianças e jovens. Poucos homens apareciam, e os que apareciam ficavam na parte da frente do templo ou nos espaços laterais. Homens e mulheres não se misturavam nas igrejas da minha meninice e juventude. O terço era rezado com devoção e cada mistério era seguido de um cântico mariano. Muitos desses cânticos ainda os retenho na memória, sentindo o fervor com que eram cantados.Antes do terço, era hora de encontro, também, dos rapazes e raparigas. Depois dos trabalhos no campo e nas secas de bacalhau, todos precisavam de descobrir o homem ou a mulher das suas vidas. Os namoros começavam a caminho da igreja e continuavam depois do terço. E muitos deram casamento. Quando hoje passo por alguns casais, bem me lembro de que começaram no mês de Maria. Outros nasceram nas festas religiosas. Nos arraiais de Senhora da Nazaré e de Nossa Senhora da Conceição muitos “nós” se deram para a vida. Antes da festa, tudo se preparava com cuidados especiais. As coisas não aconteciam por acaso. Nas feiras dos “catorze” e dos “vinte e oito”, em Aveiro, e dos “treze”, na Vista Alegre, compravam-se os tecidos garridos para as costureiras fazerem vestidos bonitos para as raparigas casadoiras e outras, e fazendas para os alfaiates fazerem fatos, por medida e duas ou três provas, para os rapazes. Era preciso apresentarem-se bem, de modo que dessem nas vistas. Quanto mais vistosos e aperaltados se apresentassem, mais facilmente iniciavam namorico, que se tornava namoro, de preparação para a vida a dois. Nos arraiais e debaixo das arcadas que ornamentavam as festas, na rua principal, desde há muito chamada Avenida José Estêvão, em homenagem ao tribuno famoso que pugnou pela construção da via, ao que se diz para mais facilmente chegar ao Palheiro que possuía na Costa Nova e que ainda existe, os gafanhões e outras gentes vizinhas caminhavam em duas filas largas, que se movimentavam em sentidos contrários, sem se atropelarem. Enchiam a rua num vaivém que se prolongava durante a tarde e a noite. Comiam-se uns bolos, cavacas e outros, e ia-se pondo o olho, volta após volta. Quando se julgava ser o momento certo, mudava-se de fila, procurando a posição estratégica para iniciar a conversa: a menina dá-me licença que a acompanhe? Se ela não tivesse outro debaixo d’olho e lhe agradasse o convite, podia ser este o princípio de uma história que acabaria em casamento. Caso contrário, respondia que estava comprometida. Depois é o que toda a gente imagina: se o amor à primeira vista fosse muito forte, venciam-se todos os obstáculos para atingir os fins desejados. O cuidado na forma que todos punham nesta preparação para a vivência das festas levou a que muitos começassem a desconfiar da verdadeira elegância e arte de bem vestir dos gafanhões. De tal forma, que se começou a espalhar a ideia de que, “quem compra no domingo da festa, perde dinheiro na segunda-feira”. Fernando Martins

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