sexta-feira, 20 de junho de 2008

As Novenas

::S. João da Praia da Barra


Não é novidade para ninguém se dissermos que os nossos avós eram gente crente, de uma fé inquebrantável bebida no seio da família, onde as orações quotidianas tinham hora marcada. Ao levantar e ao deitar ficavam por conta de cada um, mas às refeições e antes da ceia eram momentos de oração colectiva, com o terço a marcar presença na grande maioria dos lares gafanhões. O pai ou a mãe, se aquele andava embarcado, ou um dos filhos orientava a reza do terço, onde no final eram recordados todos os familiares falecidos, com intermináveis orações por suas almas. Dessa fé me falou muitas vezes o tio João, também ele homem crente com preocupações de transmitir a quem o ouvia o que sabia das coisas da Igreja e da Bíblia.
Em dia de recordações, o que lhe era habitual, falou-me das novenas, que já estavam a cair em desuso. Eram promessas em que participavam nove jovens, rapazes e raparigas, para além da pessoa em dívida para com qualquer santo ou santa, ou mesmo Nossa Senhora. Também participei em algumas delas, motivo por que as recordo, com que saudade!, sabendo de antemão que alguma coisa passará, tantos são os anos que já se foram.
A “dona” ou o “dono” da promessa fazia os inevitáveis convites a nove meninos e meninas, ou só meninos ou só meninas, rapazes e ou raparigas, conforme o prometido, e no dia aprazado, normalmente ao domingo ou em qualquer dia santo de guarda, lá íamos em grupo, a pé, ora à Senhora da Saúde, na Costa Nova, ora à Senhora dos Navegantes, no Forte, ora ao S. João, na Barra, ora à Senhora de Vagos, onde rezávamos o terço e uma ou outra oração da devoção do organizador ou organizadora da novena, para depois se regressar.
Se a promessa era cumprida numa igreja ou capela das redondezas da Gafanha da Nazaré, regressávamos a casa onde nos era servido um pequeno lanche à base de tremoços, pevides e um ou outro bolito. Para regar o que se comia, bebia-se água do poço e em casos especiais lembro-me bem de ter bebido um pirolito (gasosa em garrafinha com uma bola de vidro a servir de rolha, fixa no gargalo pela pressão do gás do próprio líquido). Se era longe, a merenda era mesmo ali, no largo da capela ou da igreja, numa sombra qualquer, que naquelas idades nem se sentia a sua falta. Contavam-se umas histórias, cantavam-se umas cantigas, algumas religiosas e ao gosto da “dona” da novena, olhávamos uns para outras, e vice-versa, brincávamos, corríamos e saltávamos, e a um sinal da chefe estávamos de volta a casa, com uma tarde vivida de forma bem diferente, que naqueles tempos não havia televisões nem rádios para passar o tempo.
Quantas vezes, a organizadora da novena, talvez pelo gosto de se ver rodeada de gente nova, até marcava uma nova novena para o ano seguinte. É que, naqueles tempos, os “médicos” do corpo e da alma das pessoas, para além dos curandeiros, eram muitas vezes os santos e Nossa Senhora, a quem se recorria em horas de aflição. Que me lembre, nunca participei em qualquer novena em honra de Deus, Jesus Cristo ou Espírito Santo.
Diz o padre Resende, na sua Monografia da Gafanha, que “o povo da Gafanha, desde épocas remotas, vai em novena à Senhora de Vagos, a Santa Maria Madalena da Tabueira e do Rio Tinto e a outras igrejas e capelas circunvizinhas”. E refere que, “nas suas aflições”, os gafanhões recorriam sempre a Deus ou aos Santos, sendo, por vezes, o cumprimento das suas promessas “bastante penoso”.
Claro que os tempos são outros e hoje as novenas caíram em desuso, tão certo estou disso, por não as ver organizadas por esta Gafanha da Nazaré. Nas outras Gafanhas, não sabemos se ainda se mantêm, ou se também já foram trocadas por outras formas mais modernas de pagar promessas feitas em hora de aflições.
Não sei o porquê dessas promessas se apoiarem em nove meninos e meninas, rapazes ou raparigas, mas julgo que o número nove terá algum valor simbólico ou mágico, a que os antigos estavam muito agarrados. Lembro as devoções e as comunhões, durante nove meses, no primeiro sábado de cada mês, por exemplo, que na minha meninice eram muito frequentes.
As novenas, como outras promessas feitas pelos católicos, estavam também ligadas ao hábito de alguns quererem associar outras pessoas ou familiares às suas devoções. Eu próprio cumpri algumas promessas feitas por outras pessoas. Minha mãe fez várias promessas que eu achei por bem cumprir para a não desgostar. E não só por isso. Se me diziam directamente respeito, por que não haveria de colaborar com quem teve a bondade e a devoção de interceder junto de Nossa Senhora por mim?

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Fernando Martins

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