Era eu menino, mas já sabia que por causa dela havia fome entre as camadas populacionais mais pobres. Das classes consideradas mais baixas, sob o ponto de vista social, os lavradores eram, apesar de tudo, os que menos fome sofriam, mas nem assim deixavam a situação de vida modestíssima, andando, normalmente, durante o dia-a-dia de trabalho nos campos, descalços e pobremente vestidos. Fato de fazenda e bem passado a ferro, só para ir à missa, que logo era despido e arrumado, porque tinha de durar anos e anos.
As pessoas sem lavoura, que eram muitas nas Gafanhas, tinham de comprar tudo o que se comia no dia-a-dia, nomeadamente a boroa, as batatas, as couves, o peixe e pouco mais. Havia, é certo, quem oferecesse as sobras do que a terra dava, em troca, frequentemente, de pequenos serviços, mas compras tinham sempre que ser feitas, à mediada das magras bolsas. Daí a fome que apoquentava muitas famílias, obrigando-as a ginásticas imaginativas nas modestas cozinhas, para enganar a barriga, como amiúde se dizia.
No tempo da guerra, a mercearia que se vendia nas tabernas, estabelecimentos onde se mercava de tudo, era racionada. Cada família tinha direito, conforme o agregado, a determinadas senhas, mediante as quais poderia adquirir o que lhes correspondia. E não se podia fugir disso.
Um dia, o João, vizinho mais velho do que eu, perguntou-me se não queria ir com ele à Barra, à padaria que havia ao lado do Farol, para comprar boroa. A viagem era aliciante, porque muito raramente nos afastávamos de casa. Com a autorização de minha mãe, lá o acompanhei.
Atravessámos a velha ponte de madeira, que ligava o Forte à Barra, e seguimos apressados, porque o João sabia bem que não era chegar e comprar. Tínhamos de esperar numa fila a nossa vez e se não fôssemos lestos, o meu vizinho corria o risco de ficar sem boroa.
Chegámos e a fila estava longa. Saía da padaria e prolongava-se pelo passeio lateral. A fila não era singela, mas compacta, o que levava a responder ao “quem é a seguir?” a dois ou três balconistas, patrão e empregados. Outro patrão andava de porta em porta e vender pão de trigo, numa bicicleta com cesto, de vime sem casca, de duas abas, que pendiam para cada lado do porta-bagagens.
À medida que nos aproximávamos do balcão, começámos a ouvir, com alguma insistência, as recomendações dos atendedores, ditadas maquinalmente, “leve menos, que a boroa não chega para toda a gente”. Mas todos atiravam, receosos, que havia em casa muitas bocas a comer, e nem sempre se via outra coisa na mesa, para além da boroa, que se tragava com café, que mais não era do que água tingida com cevada torrada moída.
Quando o meu amigo chegou ao balcão, entrou no magote de gente que protestava. Algumas mulheres até choravam. A boroa tinha acabado. “Que vou eu agora dar aos meus filhos?” – perguntava uma. Outras retiravam-se, em jeito de quem quer ir a outra padaria. O meu amigo ficou. Deixou que todos saíssem e, delicadamente, disse para o dono da padaria: “Venda-me, por favor, as migalhas!”
O padeiro varreu as migalhinhas, que restavam do partir da boroa na bancada de mármore, para um canto, com uma vassourinhas de giestas, meteu-as na saca de trapos com uma pá do lixo de folha, pesou-as e vendeu-as como se fosse um bocado do pão mais comido por estas bandas. O meu vizinho comentou-me satisfeito: “É a mesma coisa; já não é preciso esmigalhar a boroa para fazer sopas de café.”
Fernando Martins
As pessoas sem lavoura, que eram muitas nas Gafanhas, tinham de comprar tudo o que se comia no dia-a-dia, nomeadamente a boroa, as batatas, as couves, o peixe e pouco mais. Havia, é certo, quem oferecesse as sobras do que a terra dava, em troca, frequentemente, de pequenos serviços, mas compras tinham sempre que ser feitas, à mediada das magras bolsas. Daí a fome que apoquentava muitas famílias, obrigando-as a ginásticas imaginativas nas modestas cozinhas, para enganar a barriga, como amiúde se dizia.
No tempo da guerra, a mercearia que se vendia nas tabernas, estabelecimentos onde se mercava de tudo, era racionada. Cada família tinha direito, conforme o agregado, a determinadas senhas, mediante as quais poderia adquirir o que lhes correspondia. E não se podia fugir disso.
Um dia, o João, vizinho mais velho do que eu, perguntou-me se não queria ir com ele à Barra, à padaria que havia ao lado do Farol, para comprar boroa. A viagem era aliciante, porque muito raramente nos afastávamos de casa. Com a autorização de minha mãe, lá o acompanhei.
Atravessámos a velha ponte de madeira, que ligava o Forte à Barra, e seguimos apressados, porque o João sabia bem que não era chegar e comprar. Tínhamos de esperar numa fila a nossa vez e se não fôssemos lestos, o meu vizinho corria o risco de ficar sem boroa.
Chegámos e a fila estava longa. Saía da padaria e prolongava-se pelo passeio lateral. A fila não era singela, mas compacta, o que levava a responder ao “quem é a seguir?” a dois ou três balconistas, patrão e empregados. Outro patrão andava de porta em porta e vender pão de trigo, numa bicicleta com cesto, de vime sem casca, de duas abas, que pendiam para cada lado do porta-bagagens.
À medida que nos aproximávamos do balcão, começámos a ouvir, com alguma insistência, as recomendações dos atendedores, ditadas maquinalmente, “leve menos, que a boroa não chega para toda a gente”. Mas todos atiravam, receosos, que havia em casa muitas bocas a comer, e nem sempre se via outra coisa na mesa, para além da boroa, que se tragava com café, que mais não era do que água tingida com cevada torrada moída.
Quando o meu amigo chegou ao balcão, entrou no magote de gente que protestava. Algumas mulheres até choravam. A boroa tinha acabado. “Que vou eu agora dar aos meus filhos?” – perguntava uma. Outras retiravam-se, em jeito de quem quer ir a outra padaria. O meu amigo ficou. Deixou que todos saíssem e, delicadamente, disse para o dono da padaria: “Venda-me, por favor, as migalhas!”
O padeiro varreu as migalhinhas, que restavam do partir da boroa na bancada de mármore, para um canto, com uma vassourinhas de giestas, meteu-as na saca de trapos com uma pá do lixo de folha, pesou-as e vendeu-as como se fosse um bocado do pão mais comido por estas bandas. O meu vizinho comentou-me satisfeito: “É a mesma coisa; já não é preciso esmigalhar a boroa para fazer sopas de café.”
Fernando Martins
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