Escola da Ti Zefa, onde fiz o exame da 3.ª classe
Quando encontrei o meu amigo João [nome fictício], na avenida principal da cidade, nem sequer soube, de repente, como era o seu nome. Emigrante há décadas, só de tempos a tempos vinha à terra, sempre no mês de Agosto, mês em que eu habitualmente saía para gozar, longe da rotina, uns dias de lazer. Esta coincidência de desencontros a fio fez de nós uns simples desconhecidos.
Saí de casa logo de manhã cedo com vontade de caminhar ao deus-dará, usufruindo de um sol que tardava em aparecer para nos aquecer. Ruas cheias de gente que deambulava a caminho da igreja matriz, para a missa dominical, ou em busca de um lugar num café do centro da cidade para saborear a “bica” e ler o jornal. Das pastelarias e padarias saíam pessoas apressadas com saquinhos de pão fumegante que apetecia comer, logo ali, barrado com manteiga. Carros passavam decerto com destinos marcados e no quiosque eu esperava ansioso o diário que todos os dias costumo ler, na convicção de que iria ter acesso a alguma novidade, daqueles que nos prendem a atenção e nos deixam a pensar.
Da berma da rua, uma voz, forte e alegre, chama por mim, feliz pelo encontro. Olho e vejo um rosto conhecido de há muito tempo. Do tempo da escola primária, da Escola da Ti Zefa, onde o professor Ribau nos ensinou as primeiras letras e nos encaminhou na vida.
— Sabes quem eu sou? — perguntou, certo de que eu o reconheceria, o meu antigo companheiro de classe.
Confesso que os olhos e a voz me não eram estranhos. Mas o nome não me saiu. Disfarcei o mais que pude e comecei a conversar, indagando das suas andanças. Que tinha emigrado, que andara embarcado, que já tinha netos, que vivia da reforma e do mealheiro que fora abastecendo ao longo dos anos, que agora andava pelas ruas da cidade à cata de recordações, que tinha encontrado bastantes colegas da escola e das brincadeiras, que se cruzava com amigos dos vários empregos que teve, que era muito feliz. Mas o nome, o nome dele nunca me vinha à memória. Teimosamente eu ia tentando regressar ao tempo das nossas brincadeiras. A conversa nunca mais tinha fim. Eu gostava de o ouvir e de ver a sua felicidade, de estar com um amigo que me fez retroceder até à meninice, levando-me à escola primária, onde, aos sábados, o nosso professor contava sempre histórias carregadas de moral.
Jamais esquecerei a história do jovem que tinha por hábito mentir, gritando no monte, junto do rebanho que apascentava, que havia lobo à vista. Os aldeões acorriam e nada. Regressavam a casa revoltados com a desfaçatez do jovem. Mas um dia o lobo veio mesmo para atacar o rebanho. O rapaz bem gritou para lhe acudirem, mas desta vez os aldeões não responderam ao pedido de socorro. E o jovem pastor lá ficou sem uma das suas boas ovelhas. Depois vinha a lição de moral, que fomos guardando para a vida.
Ali, pregados no chão, as memórias de infância surgiam uma após outras, mas o seu nome, por mais que contornasse as conversas, sempre na esperança de o ouvir da sua própria boca, nunca surgia.
De repente, o meu amigo lembrou o dia do exame da terceira classe. Recordo-me bem. Alinhados em duas filas, esperávamos o nosso professor e os examinadores. Como era costume, entrámos na sala segundo um critério muito próprio do nosso mestre. A primeira fila a entrar era a que estivesse mais alinhada, com espaços entre alunos mais homogéneos. Professor atento à disciplina gostava de premiar os mais respeitadores das leis que estabelecia.
Quando o meu amigo se cruzou com ele, junto à porta de entrada, o nosso professor sussurrou-lhe com alguma mágoa:
— Ó João, então não tinhas uns sapatos para calçar neste dia?
E foi assim, com esta história contada pelo meu condiscípulo, que recordei o seu nome, perdido na minha memória durante minutos sem fim.
Fernando Martins
In "Gafanha da Nazaré — 100 anos de vida"
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