Sabia que... por estas bandas das Gafanhas, a Páscoa era celebrada com pompa e circunstância? A semana santa, como etapa final da Quaresma, com todos os seus rituais, começava na segunda-feira. Na 5ª, 6ª e sábado havia, como há ainda hoje, o Tríduo Pascal. Eram chamados padres, vindos das paróquias vizinhas, para pregar aos fiéis (na altura ainda os havia!). Subiam ao púlpito, que só já existe nas igrejas antigas, e faziam uso dos seus dotes de oratórica.
Não me lembro propriamente das palavras dos prelados, mas retenho, na minha memoriazinha de criança, algo que me impressionou: os gestos histriónicos do orador, aliados às suas inflexões de voz, consoante o teor do sermão, davam à prédica quaresmal um tom sinistro. Às vezes parecia estar a ralhar com as pessoas e eu, que não tinha feito nenhuma asneirita, nesse dia, perguntava à minha mãe: - Ó mãe, aquele homem está a ralhar comigo também? Mas eu hoje portei-me bem!
Na assembleia, toda a gente escutava com uma atenção devota, excepto aqueles que, cansados dos duros trabalhos agrícolas, cabeceavam. Não sei se deixavam sair por um ouvido, o que lhes entrara por outro. Será que nem sequer entrava? Boa pergunta para uma resposta possível.
Integrava várias cerimónias, incluindo o lava-pés, na 5ª, com a morte de Cristo na 6ª e culminava no sábado santo, com a missa da meia-noite. Como grande simbolismo da festa da Páscoa, na hora em que se proclamava a ressurreição de Cristo, era queimado o Judas. Era um boneco em tamanho natural, vestido com roupas velhas e recheado/enchido de palha e desperdícios.
Era apoteótico ver aquele “traidor” içado numa forca improvisada, ser consumido pelas chamas, para regozijo de todos os espectadores. Era um ritual, num misto de religioso e profano, como forma de demonstrar a vitória do Bem, sobre o Mal. No dia de Páscoa, propriamente dito, havia a visita pascal, feita pelo pároco da freguesia. Era uma “comitiva” composta pelo pároco e os seus “assessores”. Estes carregavam, nos cestos que traziam, as oferendas que constituíam a côngrua para o padre: ovos, feijão, milho, batatas, etc. Num meio, marcadamente rural e piscatório, tudo o que viesse à rede, era peixe! E do bom!
A nível gastronómico, havia também alguns costumes que são dignos de registo. A expressão “ir à madrinha”, assenta as suas raízes no costume, muito praticado, de visitar os padrinhos, no dia de Páscoa. Era prática, nas Gafanhas, os padrinhos darem aos afilhados um folar de massa doce, com ovos cozidos. colocados por cima. Para que os ovos ganhassem uma cor mais atractiva, eram cozidos com cascas de cebolas. Ficavam entre o castanho e a cor de tijolo. O número de folares de uma família calculava-se desta maneita: n(filhos)X2. Imaginemos uma família com 5 filhos.
Quantos folares se juntavam naquela casa? Nem mais nem menos, 10 folares! As crianças que só comiam esses pães doces, uma vez por ano, aguardavam, ansiosas, o dia em que pudessem saborear esse almejado petisco. Algumas mães de família, tinham o hábito de cozer ao sábado, outras já à 6ª feira. As que o faziam, neste dia, deparavam com um grande problema. Era 6ª feira santa, dia da morte do Senhor, pelo que a Igreja católica instituíra dia de jejum e abstinência.
Assim, católico que se prezasse tinha que “guardar” essa restrição: comer menos, jejum, só podia comer-se às refeições e pouco. A abstinência consistia em se privar de carne neste dia. Era expressamente proibido pelas leis da Santa Madre Igreja, era um pecado capital! Se alguém comesse lagosta, por que não se incluía em nenhuma das subclasses da carne, nem pelo facto de ser do mesmo género feminino, já não era excomungado Falácias da própria Lógica humana!
Agora, imagine o leitor, quando, na 6ª feira de aleluia, o ar impregnado do cheirinho dos folares… as crianças não podiam provar, sequer, o pão quentinho a sair do forno. Bem suplicavam à mãe: - ó mãe dê-me um bocadinho de folar, nem que seja só para lhe tomar o gosto! A mãe, se calhar com tanta vontade de dar como a vontade de comer da filha, dizia-lhe pesarosa: - só depois da meia-noite, até lá ainda é 6ª feira, dia de jejum e abstinência. As energias dispendidas durante o dia, nas brincadeiras, eram, na altura, muito salutares. Estar em frente de um computador ou de uma Playstation, era um mundo desconhecido! A contestaçãozinha vinha à flor da pele.
Terá sido essa revolta amordaçada que mais tarde eclodiu na Revolta dos Cravos? No dia 25 de Abril! Um estudo psicanalítico poderá vir a prová-lo!!!
O afilhado recebia dois folares: um do padrinho, outro da madrinha. O número de ovos variava consoante a idade do afilhado. Nem sempre correspondia exactamente ao número de anos, pois era impossível, mas havia certas idades como 5, 6, 7 anos, em que havia uma correspondência perfeita.
Quando a rapariga estava casadoira, era difícil fazer um folar que correspondesse, quer em número de ovos, quer em tamanho, à idade da mesma. Diziam as mulheres que se ocupavam dessa tarefa, que tinham dificuldade em o passar na boca do forno, com a escudela (tigela grande de madeira). Dizia-se à boca cheia que era um folar do tamanho da roda de um carro. Nos dias consecutivos, comia-se folar até à saciedade!
M.ª Donzília Almeida
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