quinta-feira, 16 de junho de 2011

O velho Arrais vivia do passado como quem vive dum sonho

 Arrais Gabriel Ançã



O Arrais Gabriel Ançã

Pelo Dr. Frederico de Moura

Eu estou a vê-lo. Tenho-o guardado na retina desde a infância – desde a infância que, como coisa nenhuma, sabe guardar retratos pelos tempos fora, envolvê-los em névoa de sonho e cercá-los de um nimbo de ternura humana. Mas, de vê-lo a exprimi-lo, de tê-lo a comunicá-lo, vai uma distância que a minha pobre pena não vence e que a minha palavra não consegue percorrer antes da laringe me ficar afónica.
A bruma da distância, é certa, vincou-lhe mais as sombras, marcou-lhe mais os traços, deixou-o mais descarnado de fundos diluentes, com as proeminências e os ângulos mais pontiagudos. A visão da adolescência enriqueceu-lhe a figura tisnada e rude de um bafo quente de humanidade e de uma legenda brônzea de heroísmo. Mas foi tal o respeito que a sua figura me transmitiu que, agora, até tenha medo de lhe tocar para a trazer para aqui.

Eu já tenho visto a sua máscara sulcada de rugas de severidade; eu já a encontrei não sei aonde, mas talvez nas tábuas de Nuno Gonçalves, de entre aqueles grupos de portugueses, sérios, graves e firmes.
Conheci-o já na ruína. Mas, como um castelo que tivesse desabado, os escombros ainda metiam respeito.
Passava horas e horas a espreitar a réstia do sol que lhe desentorpecia as juntas dormitando amiúde, num sono de ausência, sem deixar cair da firmeza da sua boca o cachimbo que lhe corroborava a fisionomia. Na cabeça um barrete negro, enterrado até aos supracílios, ensombrava-lhe ligeiramente o olhar. Um cheiro intenso e acre a tabaco se evolava dele e as palavras saíam-lhe pausadas, sentenciosas e graves... Sobre os ombros, um gabão negro envolvia-o de austeridade quaresmal e monástica. Usava uma linguagem sumária e rica de expressão que lhe saía entremeada com baforadas de fumo forte com o cheira da pólvora. Contava coisas do Mar... e era um livro de memórias a desfolhar-se nas palavras entrecortadas e esquemáticas, dum discurso sincopado.
O velho Arrais vivia do passado como quem vive dum sonho, e nutria dele as horas longas da sua velhice, a passar, conta por canta, o rosário infinito dos tempos passados na faina da pesca.
Tinha metalizado o brilho dos olhos a perscrutar na lomba das vagas a traição dos naufrágios e a sondar, no céu e nas estrelas, a fúria das tormentas. 
Tinha espessado as sobrancelhas a olhar carrancudo para a hostilidade das ondas e a investir com o silvo serpentino do vento. E o rosto povoara-se-lhe todo de uma grafia complicada, que contava uma epopeia de luta com as negras águas do mar.
A sua voz tinha asperezas arenosas, arranjadas a dar ordens por cima do vozear da companha e do estrépito da água a bater no costado do barco em crescente. E, ainda quando o conheci, as suas palavras rasposas e ensurdecidas tinham o tom do comando categórico.
Já lá vão anos em bardo sobre o dia em que a Morte o venceu e o fez cair na cova do cemitério, mas o relevo da sua máscara ainda se não achatou na minha retentiva visual, que lhe conserva as cores solenes sem as deixar esmaecer; e nem as suas falas graves, impregnadas de brisa salgada, se me esvaíram do ouvido.
Passou pelas ruas negras e tortuosas da Vida sem esboçar sorrisos nem amenizar o perfil severo, como se todos os seus actos tivessem um conteúdo de seriedade espessa; e a mesma ruga da testa presidia ao acto de deglutir um copo de aguardente e ao de arrancar pelos cabelos uma vida ao cachão que ia abrir uma sepultura.
A sua presença tinha não sei quê de tutelar como uma velho carvalho centenário que dá sombra a quem dela se aproxima, porque o náufrago agarrado pela sua mão era como se estivesse preso a uma âncora.
Havia nele uma santidade específica que não cabia em nichos – a não ser que o nicho fosse uma cratera hiante – e que não tinha um vestígio que fosse de doçura superficial. Era uma santidade rígida e maciça, que o levava a arriscar a vida para salvar um irmão-homem com o ar natural com que arrancaria um peixe maior do seio de um cardume e sem colocar à roda do episódio nenhuma coroa de palavras que ultrapassassem o sentido pragmático, ou qualquer gesto que emoldurasse a façanha de legenda.
Quis dar um retrato, e saiu-me um esboceto de perfis esbatidos e de expressão disártrica; quis investir com o cerne de um tronco, e saiu-me o miolo de sabugueiro; e, em vez de uma figura forte e rica, saiu-me uma fotografia de fotógrafo de província, anemiado, pelo tempo, num velho álbum de recordações.

Em "Aveiro e o seu Distrito", n.º 10, Dezembro de 1970

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