Mestre Mónica
Os tempos mudaram, mas é bom recordar
Tenho-me interrogado inúmeras vezes
sobre o porquê de um certo espírito de descontentamento de gafanhões em relação
a Ílhavo, que não em relação aos ilhavenses. Na minha meninice e juventude era
notória até uma atitude de revolta.
Com o tempo, e sobretudo depois de
na primeira cadeira autárquica se sentar um gafanhão, gestos de
descontentamento e revolta começaram a atenuar-se. Hoje, em plena democracia,
as relações tornaram-se cordiais, pese embora os naturais pontos de vista
divergentes dos vários partidos políticos existentes.
Sabe-se que a Câmara de Ílhavo,
desde a criação da freguesia da Gafanha da Nazaré e mesmo antes disso, mostrou
um desprezo incompreensível pelas Gafanhas e pelos gafanhões. Nas sessões
camarárias, pouco ou nada se falava deles. Apenas entravam nas agendas Ílhavo e
Costa Nova. Tudo o mais era relegado para as calendas gregas.
Em 1936, o ponto de ruptura atingiu
nível elevado. A energia eléctrica passou por cima da Gafanha da Nazaré para a Costa
Nova e Barra, porque o Farol necessitava dela, e os gafanhões foram ignorados.
Não havia dinheiro para eles nem para as indústrias e comércio locais.
A revolta deu origem à Cooperativa
Eléctrica, para nos dar luz e energia. E só em 1939 foi possível aos gafanhões
olharem-se cara a cara à noite.
Por essa e outras razões, o “Diário
de Lisboa” foi alertado para as injustiças de que se queixavam os nossos avós.
E em 14 de Agosto de 1947 inicia a publicação de uma reportagem, desdobrada em
quatro publicações, com início na primeira página e continuação nas centrais,
intitulada “A Ria de Aveiro e a sua Gente”, da responsabilidade de um «enviado
especial». Começa assim:
«Mão fina de mulher trouxe à
nossa Redacção esta nota que era um apelo às nobres intenções de quem vive pela
terra: “Venha a Aveiro e à sua Ria, dê um salto à Gafanha e à Praia da Barra,
se quer acaso conhecer os verdadeiros problemas de um povo que anda à roda das
cinco mil pessoas …”
E nós fomos a Aveiro e à sua
Ria, nas horas da sua vida intensa ou nas outras de misteriosos silêncios — e
demos um salto à Gafanha, freguesia do Concelho de Ílhavo, e à Praia da Barra,
que por ironia do destino, pertence à mesma terra do velho arrais Gabriel Ançã.
Do que vimos e ouvimos vamos dar conta, deixando que a terra, o mar, e os
homens façam ouvir o seu clamor…»
O enviado especial, não nomeado,
descreve a Ria como «um sortilégio da Natureza» e diz que «a gente que a
contorna sabe o que deve ao labor que ela lhe faculta».
Conta a história da laguna e entra
na Gafanha para ver e ouvir o povo e alguns líderes locais. Regista que a Praia
da Barra pretende depender do Concelho de Aveiro, por ser «o que mais convém às
condições do seu progresso». Defenderam esta hipótese D. Carolina Homem Cristo,
Dr. Peixinho, Dr. Alberto Machado, Coronel Gaspar Ferreira e Egas Salgueiro,
entre outros, todos de Aveiro, mas com ligações grandes à Praia da Barra e à
Gafanha da Nazaré, por segunda residência ou indústrias.
Mestre Mónica foi ouvido e sentido
como poucos. «Se a Gafanha não existisse,
Ílhavo não poderia ser concelho de segunda! E todavia, os ilhavenses não
acreditam nesta verdade e andam há dezenas de anos a ocultá-la de si próprios,
negando à nossa terra todos os benefícios», disse.
Depois afiançou ao jornalista que a
transferência para o concelho de Aveiro foi reclamada por «oitenta por cento da população da Gafanha» que havia assinado «uma exposição dirigida ao ministro do
Interior, por intermédio do Governo Civil», com o intuito da mudança de
concelho.
Confirmou, entretanto, que a
exposição não saiu do Governo Civil, por o chefe do Distrito ter duvidado da
autenticidade das assinaturas. «Gastei
contos de réis para mobilizar dezenas de camionetas, mas carreguei com a
“gafanhotada” toda para Aveiro», mas o Governador Civil não pôde comparecer»,
esclareceu.
O capitão Vilarinho denunciou que
«não há gafanhão que tenha o gosto ou o hábito de lá ir» [a Ílhavo] e Clarinda
Castro Teixeira considera mesmo que a passagem para Aveiro é tão precisa «como o pão para a boca». Diz que «os de Ílhavo embirraram connosco. É de sempre».
O último a pronunciar-se sobre esta
pretensão do povo da Gafanha da Nazaré foi o presidente da Câmara de Ílhavo,
Dr. João Senos, que tentou justificar as carências da nossa comunidade e as
dificuldades em lhe dar respostas adequadas.
Apontou o que tem feito na
autarquia para resolver os problemas, acrescentando que tudo estaria a ser
estudado. E sublinha a dado passo do seu depoimento:
«Sabe
no que creio? No valor dos gafanhões, no seu progresso. E essa crença me leva a
outra: dentro de anos, a Gafanha não pertencerá nem ao concelho de Aveiro nem
ao de Ílhavo. O ritmo da sua prosperidade, fruto da prosperidade de outros
lugares todos os dias nascidos sob a sua égide — essa é que há-de determinar a
constituição da Gafanha em sede de concelho!»
O descontentamento continuou e as
reivindicações sucederam-se numa luta desigual. Quem ocupava cargos políticos
nem sempre sabia ou queria ouvir o povo, agindo como uns “iluminados”. À ideia
de mudar de concelho seguiu-se a da criação do concelho da Gafanha, que
englobasse as diversas povoações com esse nome. Pretendia-se avançar para uma
unidade geográfica caracterizada por uma identidade humana muito mais próxima.
Não deu frutos e a Gafanha da Nazaré não terá perdido nada com isso.
As razões que motivaram essa
reivindicação prenderam-se com a frustração que os gafanhões experimentaram
face à impossibilidade de ocuparam cargos de liderança no Município. Isso era
monopólio dos ilhavenses.
Com o advento da democracia tudo se
alterou. Nos últimos anos, a cadeira da presidência da Câmara de Ílhavo tem
estado ocupada por gafanhões. E com eles, sobretudo nos mandatos do Eng. Ribau
Esteves, a situação alterou-se. As Gafanha são tratadas em pé de igualdade com a sede do Município.
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