quinta-feira, 19 de maio de 2011

Escritores fascinados pela Ria de Aveiro — 17



«A Ria entende-se em canais, em esteiros, em valas, em fiozinhos de água, dividindo-se e subdividindo-se até ao capilar, entrando pela terra dentro, recortando-a e irrigando-a de água salgada, ou, pelo menos, salobra, e que se vai adocicando à medida que foge do mar e se estende, por aí fora, a servir de espelho a uma lavoura anfíbia que lança a semente ao chão e penteia o fundo lodoso das cales, que surriba terra até sentir os pés encharcados e pesca pimpões nas valas intercalares nos fugidios momentos de lazer.

Os longes de água são emoldurados por um debrum delgadinho – topo de planície raso povoada de casas alapadas – e tem-se a sugestão de que a terra se envergonha e se humilha perante a imensidade da laguna, esfumando-se e diluindo-se no horizonte de encontro ao perfil violeta dos montes das distância...

Em certas manhãs, doiradas pelo sol nascente, a Ria parece toda um espelho onde, apenas, um trémulo de evaporação – ténue e vibrátil – põe um vestígio de movimento ritmado.

E, então, os malhadais, os montes de sal, os palheiros exíguos e pintados a zarcão, duplicam-se, invertidos, nas águas quietas onde, de vez em quando, uma gaivota, maleabilíssima e ágil, raspa uma tangente quase imperceptível.

As pálpebras cerram-se sobre a pupila magoada por esta duplicação da luz que se remira no espelho da água e, no silêncio inundado de sol, o chap chap de uns remos, ou o golpe da ponta de uma vara que empurram o barco que desliza, põem uma nota fugidia de onomatopeia.

Um homem de músculos individualizados – como num quadro mural de anatomia – corre sobre a borda de uma bateira mercantel como se andasse sobre o asfalto de uma avenida. Visto de longe, recortado na luz diáfana da manhã que lhe aviva as linhas e delimita os contornos, não sabe a gente se tem na frente um ginasta, se um bailarino. Os pés parece que não pisam e os movimentos de vaivém, desembaraçados e leves, semelham passos coreográficos.»

Frederico  de Moura
"Aveiro e o seu Distrito", n.º 5, junho de 1968

1 comentário:

Barba azul disse...

Que bela e exacta descrição!