Moliceiro na Bestida
«No velho pontão da Bestida, que as invernias todos os anos despedaçam, dir-se-ia que Portugal acaba. Portugal e a terra na sua solidez física, nos seus costumes mais vulgares, e até nalguns dos elementos mais primordiais da sua vida. É outro mundo, líquido, brumoso, feito de distância azul, isolado do continente por uma ria maravilhosa, paleta de mil cores, tão larga que cabe nela o Tejo, nos seus dois quilómetros de água tranquila e adormecida. Fecham-se atrás de nós, como sob o pano de uma ribalta, as terras ribeirinhas da Murtosa, e de Bunheiro, entre pâmpanos virentes, muito tufados, milheirais extensos que ondeiam as suas bandeiras doiradas, pomares cerrados, onde os ramos já nos estendem os frutos maduros, corados de sol, que fendem a casca, pejados de sumo.
Uma fotosfera prateada envolve a ria que vem do Furadouro, lá longe, para nascente, recortada de canais, hérnias líquidas daquele ventre de água, extraordinariamente fecundo que se desentranha em admiráveis espécies piscatórias que, por vezes, como a carnuda tainha, se vêem saltar à superfície cristalina, tão límpida que se enxerga o seu fundo doirado de areia, manchado duma verdura submarina, o moliço, com que a dez léguas em redor se adubam as leiras.
A visão da paisagem, na sua penumbra sobrenatural, ascende em sonho na visão extática de lirismo. Não há uma cor violenta, naquela paleta aquática, mas tons, sobre tons, prateados e violetas, tão etéreos e fugitivos, que parecem pintados numa laca japonesa, pelo pincel dum Outamarco ou dum Fujita.»
de Artur PorteIa
Fonte: "Aveiro e o seu Distrito", n.º 12, 1971
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