Desde menino que me habituei a frequentar a casa do tio João. Ia lá todos os dias, à noite, buscar o leite para o almoço. Almoço era a primeira refeição do dia. As outras duas refeições eram o jantar, por volta do meio-dia, e a ceia, noite dentro, quando terminavam os trabalhos agrícolas. Só na minha juventude é que se verificou a mudança, estabelecendo-se o pequeno-almoço, almoço e jantar. Mas esta nova ordem não entrou facilmente nos hábitos dos gafanhões.
Conta-se, com alguma graça, que uma jovem costumava chamar a irmã mais velha que namorava à porta de casa, para vir para dentro, para jantar, porque a ceia já estava na mesa. A ida ao leite era um ritual que envolvia crianças e adolescentes, cujas famílias não tinham vacas turinas. À tardinha, muitos se juntavam à porta do tio João. Uns à espera do leite e outros à cata de namoricos. Conversava-se e brincava-se. Corridas, “escondidas”, “agarra”, “lencinho”, “pião” e “calarotes”, entre outros, eram jogos animados que ninguém dispensava. Mas a magia de ver mungir as vacas, “tirar o leite” como então se dizia, atraía toda a malta. O tio João, sempre sorridente, lá nos explicava, exemplificando, como se procedia à ordenha.
Aproximávamo-nos temerosos, com medo de algum coice do animal, e ele, brincando, brindava-nos com um esguicho de leite que saía da teta da vaca. Era uma risada, com o leite quente a atingir-nos nas faces curiosas. E até havia quem frequentemente pusesse a boca a jeito para receber aquele leite quente e saboroso. Quando pela primeira vez entrei em casa do tio João confirmei que era muito semelhante às casas dos outros gafanhões agricultores que eu já conhecia. Um pouco melhor, que o nosso patriarca era pessoa de bom gosto e de bens.
Havia quartos para toda a família, mobilados e com boas roupas de cama. Notava-se asseio e mãos de mulher no arrumo de tudo. Eram as mãos da esposa, mas também das filhas solteiras que viviam mais para a casa do que para a agricultura. Nas habitações normais dos demais lavradores, a cozinha lá tinha a trempe de ferro, panelas de três pés, aparadores, mesa e bancos toscos, talheres de ferro e de cabo de osso, passando pela cantareira com a respectiva cântara de ir à fonte buscar água. Era um hábito de muitas famílias beber água da fonte, que não era mais do que um poço aberto nos areais da mata da Gafanha. Dava gosto beber essa água pela sua limpidez e pela frescura que lhe era dada pela cântara de barro.
Na cozinha de fora, mais modesta, quase sempre de chão de junco, havia o forno onde se cozia a sempre apetecida boroa de milho. E com que apetite era esperada a bola (boroa pequena e achatada, feita do resto da massa que ficava agarrada aos lados interiores da gamela) para comer com chouriço ou alguma carne de porco, mesmo gorda. Panelas e tachos cobertos de sucessivas camadas de fumo, que era sempre muito quando se cozinhava, já que se fazia o aproveitamento de tudo o que pudesse arder: talos de couves, gravetos de árvores, bicas, pinhas, caroços de milho e serrim, entre outros combustíveis sólidos. Era preciso poupar e tudo servia para evitar a compra de lenha.
Com o serrim, que era fornecido pelas serrações e pelos estaleiros, utilizava-se o “sarico”, feito de uma lata de tinta, vazia, com um furo lateral por onde se chegava o lume. Enchia-se de serrim, havendo o cuidado, primeiro, de lhe introduzir duas garrafas, uma na horizontal, que dava para o tal furo, e outra na vertical, que pousava sobre a primeira.
Assim ficava uma parte oca, entre o serrim, por onde ele começava a arder, para cozinhar a apetitosa sopa das nossas avós, onde não faltava nada, desde os feijões, duros de cozer, que lhe emprestavam o nome, até às batatas, passando por couves, nabos, arroz, massa, toucinho, chouriço e morcela. Era o tal caldo gafanhão onde, depois de frio, se podia espetar uma colher que ela não caía. Ao lado, num compartimento mais sombrio e mais fresco, quase sempre sem janelas, estava a salgadeira que guardava o porco, governo de todo o ano.
FM
Conta-se, com alguma graça, que uma jovem costumava chamar a irmã mais velha que namorava à porta de casa, para vir para dentro, para jantar, porque a ceia já estava na mesa. A ida ao leite era um ritual que envolvia crianças e adolescentes, cujas famílias não tinham vacas turinas. À tardinha, muitos se juntavam à porta do tio João. Uns à espera do leite e outros à cata de namoricos. Conversava-se e brincava-se. Corridas, “escondidas”, “agarra”, “lencinho”, “pião” e “calarotes”, entre outros, eram jogos animados que ninguém dispensava. Mas a magia de ver mungir as vacas, “tirar o leite” como então se dizia, atraía toda a malta. O tio João, sempre sorridente, lá nos explicava, exemplificando, como se procedia à ordenha.
Aproximávamo-nos temerosos, com medo de algum coice do animal, e ele, brincando, brindava-nos com um esguicho de leite que saía da teta da vaca. Era uma risada, com o leite quente a atingir-nos nas faces curiosas. E até havia quem frequentemente pusesse a boca a jeito para receber aquele leite quente e saboroso. Quando pela primeira vez entrei em casa do tio João confirmei que era muito semelhante às casas dos outros gafanhões agricultores que eu já conhecia. Um pouco melhor, que o nosso patriarca era pessoa de bom gosto e de bens.
Havia quartos para toda a família, mobilados e com boas roupas de cama. Notava-se asseio e mãos de mulher no arrumo de tudo. Eram as mãos da esposa, mas também das filhas solteiras que viviam mais para a casa do que para a agricultura. Nas habitações normais dos demais lavradores, a cozinha lá tinha a trempe de ferro, panelas de três pés, aparadores, mesa e bancos toscos, talheres de ferro e de cabo de osso, passando pela cantareira com a respectiva cântara de ir à fonte buscar água. Era um hábito de muitas famílias beber água da fonte, que não era mais do que um poço aberto nos areais da mata da Gafanha. Dava gosto beber essa água pela sua limpidez e pela frescura que lhe era dada pela cântara de barro.
Na cozinha de fora, mais modesta, quase sempre de chão de junco, havia o forno onde se cozia a sempre apetecida boroa de milho. E com que apetite era esperada a bola (boroa pequena e achatada, feita do resto da massa que ficava agarrada aos lados interiores da gamela) para comer com chouriço ou alguma carne de porco, mesmo gorda. Panelas e tachos cobertos de sucessivas camadas de fumo, que era sempre muito quando se cozinhava, já que se fazia o aproveitamento de tudo o que pudesse arder: talos de couves, gravetos de árvores, bicas, pinhas, caroços de milho e serrim, entre outros combustíveis sólidos. Era preciso poupar e tudo servia para evitar a compra de lenha.
Com o serrim, que era fornecido pelas serrações e pelos estaleiros, utilizava-se o “sarico”, feito de uma lata de tinta, vazia, com um furo lateral por onde se chegava o lume. Enchia-se de serrim, havendo o cuidado, primeiro, de lhe introduzir duas garrafas, uma na horizontal, que dava para o tal furo, e outra na vertical, que pousava sobre a primeira.
Assim ficava uma parte oca, entre o serrim, por onde ele começava a arder, para cozinhar a apetitosa sopa das nossas avós, onde não faltava nada, desde os feijões, duros de cozer, que lhe emprestavam o nome, até às batatas, passando por couves, nabos, arroz, massa, toucinho, chouriço e morcela. Era o tal caldo gafanhão onde, depois de frio, se podia espetar uma colher que ela não caía. Ao lado, num compartimento mais sombrio e mais fresco, quase sempre sem janelas, estava a salgadeira que guardava o porco, governo de todo o ano.
FM
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