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Escritores fascinados pela Ria de Aveiro — 23



É um momento solene. 
Aí para baixo é a ria de Aveiro

«É um momento solene. Aí para baixo é a ria de Aveiro, quarenta quilómetros de costa, vinte quilómetros para o interior, terra firme e água rodeando, todas as formas que podem ter as ilhas, os istmos, as penínsulas, todas as cores que podem ter o rio e o mar. O viajante fez bem as suas orações: não há vento, a luz é perfeita, as infinitas águas da ria são um imóvel lago. Este é o reino do Vouga, mas não há-de o viajante esquecer as ajudas da arraia-miúda dos rios, ribeiras e ribeirinhos que das vertentes das serras da Freita, de Arestal e do Caramulo avançam para o mar, alguns condescendendo afluir ao Vouga, outros abrindo o seu próprio caminho e encontrando sítio para desaguar na ria por conta própria. Digam-se os nomes de alguns, de norte para sul, acompanhando o leque desta mão de água: Antuã, Ínsua, Caima, Mau, Alfusqueiro, Águeda, Cértima, Levira, Boco, fora os que só têm nome para quem vive à borda deles e os conhece de nascença. Se este tempo fosse de estivais lazeres, estariam as estradas em aflição de trânsito, as praias em ânsia de banhos, e nas águas não faltariam as embarcações de folguedo mecânico ou à vela. Mas este dia, mesmo de tão formoso sol e e tão aberto céu, é de alto Inverno, nem sequer está a Primavera em seus primeiros ares. O viajante, pelo menos assim quer acreditar, é o único habitante da ria, além dos seus naturais, homens e bichos da água e da terra. Por isso (todo o bem há-de ter sua sombra) estão as salinas desertas, os moliceiros encalhados, os mercantéis ausentes. Resta a grande laguna e a sua silenciosa respiração azul. Mas aquilo que o viajante não pode ver, imagina, que também para isso viaja. A ria, hoje, tem um nome que bem lhe quadra: chama-se solidão, fala com o viajante, ininterruptamente fala, conversas de água e limosas algas, peixes que param entre duas águas, sob a reverberação da superfície. O viajante sabe que está a querer exprimir o inexprimível, que nenhumas palavras serão capazes de dizer o que uma gota de água é, quanto menos este corpo vivo que liga a terra e o mar como um enorme coração. O viajante levantou os olhos e viu uma gaivota desgarrada. Ela conhece a ria. Vê-a do alto, risca com as pendentes patas a polida face, mergulha entre o moliço e os peixes. É caçadora, navegante, exploradora. Vive ali, é ao mesmo tempo gaivota e laguna, como laguna é este barco, este homem, este céu, esta profunda comoção que aceita calar-se.»

José Saramago
“Viagem a Portugal”, 1981

Comentários

aveiro123 disse…
Prezado Prof. Fernando Martins!
Parabéns pelo seu Blog vai dando a assim a conhecer as maravilhas que a cidade de Aveiro e arredores tem para apreciar.
Que a saúde nunca lhe falte,com a lucidez sempre apurada.
Um Abraço deste seu amigo de há muitos anos,
Joaquim Carlos
Presidente da ADASCA
Blog:aveiro123-portaaberta.blogspot.com

NB: Para a semana vou à Gafanha da Nazaré, tinha interesse em falar consigo, sobre o Historial da Rádio, para publicar na nossa Revista Tribuna da ADASCA. Onde no podemos encontrar?
Visite o site:www.adasca.pt
Barba azul disse…
Junto-me aos parabéns do autor do anterior comentário!
Fiquei espantado com este escrito do Saramago, de que gostei muito. Não perfilho a admiração geral pela escrita do Saramago, e acho que à estranha técnica de pontuação muito se deve essa minha pouca apetência. Este texto, pelo contrário, parece seguir todas as regras que aprendi na escola. Suponho que o texto respeita o original, não sofreu alterações do editor? Concluo que não foi desde sempre que que o autor usou a célebre escrita com pontuação muito resumida.
Fernando Martins disse…
Meu caro

As transcrições que faço respeitam, rigorosamente, o original dos autores. Saramago, na sua primeira fase, como jornalista que era, cumpria as regras gramaticais. Depois, quis reproduzir na escrita o linguajar do povo, como ele um dia afirmou. É uma opção. E não compete aos artistas inovar? Os poetas não têm a chamada liberdade poética? E será que os prosadores não podem ter algumas liberdades artísticas?

Um abraço

Fernando Martins

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