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O linguajar dos gafanhões - 1

Retrocedendo no tempo

Retrocedendo no tempo, qualquer coisa como meio século, tanto quanto é necessário para chegar à nossa infância, vislumbramos na memória, qual retrato ainda não embaciado pela pátina do tempo, os gafanhões que ajudaram a erguer esta terra, marcada à nascença por uma mistura de povos na sua maioria semianalfabetos ou mesmo analfabetos, sob o ponto de vista académico, sobretudo, mas obstinados no seu querer. De vontade indómita, trabalharam a terra, primeiro, coisa que sabiam fazer como poucos, ou não estivessem eles habituados a lavrar e a cavar areias movediças e esbranquiçadas, que pouco lhes oferecia de volta, e aventuraram-se na ria e no mar, depois, numa ânsia desmedida de irem mais além. E nessa labuta diária, que deixou marcas indeléveis no temperamento e no carácter dos gafanhões , doaram-nos uma cultura de que hoje nos orgulhamos, nós, os que presentemente somos os legítimos herdeiros desses cabouqueiros das Gafanhas que se deixam beijar pela ria e pelo mar, com ternura, e que depois partem à procura de novos mundos.
Cultura essa que tem sido, desde a primeira hora, no já distante século XVII, e até aos nossos dias, mesclada de outros saberes e dizeres vindos um pouco de todo o país, dando-lhe um sabor que se vai perdendo no tempo. Hoje, com a evolução do ensino e com a influência dos diversos meios de comunicação social, e também graças ao contacto com povos de todo o mundo, que a vida do mar proporciona, os gafanhões já falam mais escorreitamente, de maneira bem diferente, por exemplo, dos tempos da nossa meninice, da década de 40, a que estamos a conduzir a memória já gasta pelos anos, é certo, mas felizmente lúcida para ouvir o linguajar cantado do nosso povo, nas fainas da ria e do mar, e principalmente nas tarefas do campo, por onde brinquei por cima de restolhos com bolas de trapos, às escondidas entre as searas, na estrada aos "calarotes", aos ninhos na mata da Gafanha que pouco depois via nascer a Colónia Agrícola, na borda à pesca da macaca, do caranguejo e de algum perdido robalito.
Linguajar alegre por entre cantigas da época e da tradição popular a desmantar o milho, a fabricar adobos nas dunas junto à mata e depois na construção solidária das casas modestas, na apanha do tremoço, nas novenas que boas almas organizavam para pagar promessas, nas festas e romarias da região, sempre alimentadas pelo espírito de convivência dos gafanhões. De tudo, restam na nossa memória cenas do quotidiano desta gente humilde, mas determinada, que fez as Gafanhas dos nossos dias, o orgulho dos que hoje, vindos de perto e de longe, de quase todo o Portugal, incluindo regiões autónomas e, ainda, dos actuais países de expressão oficial portuguesa, fazem parte integrante dos povos desta península da Gafanha. E todos estes, com a sua maneira de falar e de dizer o essencial do dia-a-dia, de cantar e de rir, de trabalhar e de viver, deram um pouco de si aos povos autóctones, num entrosamento muito feliz.
Mas hoje e aqui, onde nos apetecia continuar a recordar coisas de antanho que vivemos, vamos falar do linguajar destes povos, marcados, e de que maneira, pela vida agreste que as nortadas ainda mais agreste tornavam. Não se trata de uma língua propriamente dita, muito menos de um dialecto, mas única e simplesmente do modo de falar de um povo em que, ainda há meio século, predominava um grande analfabetismo. As meninas não iam obrigatoriamente à escola, e entre os rapazes muitos se esquivavam. E quando não se esquivavam, cedo perdiam o contacto com as letras, porque o trabalho, mesmo em meninos, os absorvia, quer nas tarefas agrícolas e nas marinhas de sal, quer na construção civil, na pesca e na ria. E ainda em indústrias então nascentes, tanto nas Gafanhas, como no concelho de Ílhavo e em Aveiro. A emigração também começou a marcar a nossa gente, e de que maneira, disso ficando rastos de hábitos de vida diferenciados, casas que nada têm a ver com a nossa identidade geográfica e humana, e o espírito de aventura e a determinação que perduram na juventude de hoje!

Fernando Martins

NB: Parte n.º 1 da palestra proferida no II Colóquio organizado pelo Grupo Etnográfico da Gafanha da Nazaré.

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