quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Salgado Aveirense em decadência




João Magueta, um marnoto 
com saudades da safra do sal 


João Gandarinho Magueta,77 anos, sete filhos e dez netos, sente-se honrado por ter sido marnoto durante 30 safras. Ostenta, por isso, na parte exterior da sua casa, um painel cerâmico alusivo à sua vida nas salinas. E fala, a talho de foice, da vida dura que levou. Chegou a ser convidado por alunos da Universidade de Aveiro para explicar, em plena marinha, as várias fases da produção do sal. Também guarda, como boas recordações desses tempos, fotografias em plena faina. E continua com saudades dos trabalhos nas salinas. Tem muita pena de ver a situação do Salgado Aveirense em completa decadência. 

João Magueta mostra que a arte de produzir sal lhe está no sangue. Começou cedo, aos 11 anos, como moço do próprio pai, marnoto, natural da Gafanha da Encarnação, mas radicado na Gafanha da Nazaré depois do casamento. O João não andou na escola, mas aprendeu a ler e a fazer contas com o pai, que, seguindo hábitos familiares, ensinou os filhos. Exceto o mais novo, que já apanhou a lei da obrigatoriedade escolar. O exame da 4.ª classe veio mais tarde, por exigência de uma fábrica de cerâmica, em Aveiro, onde trabalhava depois das labutas na marinha. Foi preparado, já adulto, para esse exame pelo professor Ramos. 
Para além das tarefas de moço e marnoto, o João trabalhava no inverno onde era possível, como nas secas e até, mais tarde, como cobrador da Auto Viação Aveirense. 
Curiosamente, o seu avô, Manuel Magueta, mestre-escola e lavrador, ensinava, aos sábados e domingos e à semana quando chovia, na Gafanha da Encarnação quem gostasse de aprender a ler, a escrever e a fazer contas. Como era tradição, os alunos contribuíam, por ano, com alguns produtos agrícolas, pois que o dinheiro era escasso. 
João Magueta começou como moço, tendo ganho, no primeiro ano, de abril a setembro, 300 escudos, e recorda, com natural nostalgia, o contato com a água salgada sobre a qual incidia o sol forte, provocando, lentamente, a cristalização do sal. 

João Magueta a rer o sal


Enquanto moço, seguiu as pisadas de quantos se iniciavam nesta faina: limpar a marinha e prepará-la para uma produção de qualidade, rer e transportar o sal, à cabeça, numa canastra, até ao cocuruto do monte, debaixo de um sol escaldante, sete dias por semana. Não havia domingos, nem feriados, nem dias santos. Folgas, só quando chovia, mas nem assim podiam abandonar as salinas, porque um ou outro temporal podia fazer estragos, exigindo pronta reparação. 
João Magueta recorda a feira dos moços. Em Aveiro, debaixo dos Arcos e na Ponte-praça, os candidatos a moços postavam-se à espera dos marnotos, na esperança de serem contratados. Os mais possantes eram preferidos para as salinas de maior produção e os mais novos para as mais pequenas. Eram contratos verbais e a palavra dada torna-se selo de garantia. Cada marinha tinha dois ou três moços, havendo-os de todas as idades, a começar pelos 11 ou 12 anos, porque nessa altura não se falava de trabalho infantil e as famílias mais pobres não podiam prescindir do ganho de todos os filhos. 
O João recorda que os moços vinham de algumas povoações, nomeadamente das Gafanhas e de aldeias do concelho de Vagos. Alguns preferiam os marnotos de Aveiro, porque os da Gafanha, também agricultores, tinham o hábito de obrigar os contratados a trabalhar na lavoura depois da lida no sal. As necessidades obrigavam os moços a sujeitarem-se a estas exigências. 
Em 1966 passou a ser marnoto, assumindo os riscos e a sorte que o tempo permitia. Os marnotos tinham um contrato verbal com o proprietário da marinha, respeitado escrupulosamente. No final da safra, o sal era vendido aos armazenistas e o produto bruto da venda era dividido, em partes iguais, pelo dono da salina e pelo marnoto. Com a sua parte, o marnoto pagava aos moços e preparava as alfaias para a próxima safra. 
Quando a receita obtida era insuficiente, o marnoto teria de arcar com os prejuízos, recorrendo, muitas vezes, a empréstimos de familiares ou amigos ou a reservas de anos anteriores. Os proprietários mais compreensivos ajudavam nessas circunstâncias. 
João Magueta olha com tristeza para a situação do Salgado Aveirense, em completa decadência, quase a torna-se espaço museológico. E garante que há três motivos que contribuíram para esta realidade: em primeiro lugar, considera que os herdeiros dos antigos donos estavam habituados a receber a sua parte, sem mais preocupações, não aceitando comparticipar nas despesas com os moços, pois, a partir de certa altura, os marnotos já não conseguiam suportar tais custos sozinhos; em segundo lugar, acha que os proprietários começaram a desprezar as suas marinhas, não as reparando convenientemente; e em terceiro lugar, admite que as obras da barra de Aveiro, tornando-a mais aberta, permitiram a entrada de mais água, o que veio danificar os muros, que não resistiram. 
O João tem muitas saudades das marinhas em que foi marnoto e reconhece que teve sorte, porque eram marinhas de boa produção. Chegou a fabricar 600 toneladas de sal em cada safra. Sempre trabalhou com gosto, mas era duro. Com o calor intenso, no pino do verão, o suor caía-lhe pelo rosto e as feridas nos pés, provocadas pelo salitre, eram dolorosas. Custavam mais do que o trabalho, garantiu-nos. 
Já no final dessa sua vida, lá se foi habituando às botas de borracha, que exigiam muito cuidado para não ferir o chão dos talhões onde os cristais do sal se formavam. 

Fernando Martins

2 comentários:

NãoSouEuéaOutra disse...

Estas histórias de pessoas do dia-a-dia são extraordinárias. A magia que as palavras oferecem ao contar a vida destas pessoas remete-nos para tantas coisas.

Tantas coisas, também, que nem sabemos. Um prazer ler.

um abraço.

M. Marnoto disse...

Sou Marnoto de apelido mas a dada altura da minha vida quis saber de perto o que é ser marnoto. Em 2005 e 2006 tive o previlégio e a honra de ajudar o Sr. João Magueta na safra do sal. Em Abril de 2005 fui ter com ele e perguntei-lhe se podia ir para a marinha nos meus tempos livres. Ele olhou para mim com ar desconfiado e lá pensou: "Mais um que diz que vem ajudar e nunca mais aparece." mas o Sr. João enganou-se. Eu apareci quase todos os dias até ao final da safra. E se inicialmente o Sr. João escondia todos os segredos da marinha, lá mais para diante davamos passeios pela marinha e ele contava-me histórias antigas bem como alguns segredos para conseguir uma produção de qualidade e quantidade. O Sr. João ensinou-me e permitiu-me experimentar as principais fases da safra, tendo sido uma das melhores experiências da minha vida.
Eu não imaginava que estar dentro daqueles rectangulos de água com o ugalho na mão me daria tanto prazer, é que a vida da cidade, embora tão próxima, parece que derrepente desaparece por completo.
Mas não tenhamos ilusões, o trabalho do marnoto é bastante árduo e pesado.
Eu sei que foi com muita pena e tristeza que o Sr. João foi obrigado a abandonar as marinhas do sal. Como ele já há poucos. O tempo passa e os responsáveis nada fazem para recuperar uma das artes mais características daquela que também é a nossa terra.

Bem haja Sr. João Gandarinho Magueta
O seu amigo
Miguel Marnoto

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