quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Agosto, mês de inverno para as marinhas


Ponte da Cambeia, Portas d'Água e Jardim ao fundo

Recordações da minha juventude

Estávamos em Agosto. Era o primeiro mês de “Inverno” para as marinhas (palavra de marnoto), dado que começavam os primeiros nevoeiros e a produção de sal diminuía a olhos vistos!
— Hoje trouxe uns sacos para levar sal para casa, diz o marnoto. Quando chegar o Inverno tenho de ter sal para salgar o porco, quando for a matadela. Logo não vamos para o Egas. Vamos para a Cambeia, que tenho lá a minha mulher à espera com o carro dos bois.
E assim foi. Terminados os trabalhos do dia, foram enchidos os sacos e transportados em padiola para a bateira.
Depois de arrumadas as alfaias no palheiro, fechado este e arrumadas as chaves num buraco de ratas, demos início ao regresso a casa. O vento era fraco, mas mesmo assim içámos a vela, e lá viemos, desta vez em direcção ao Esteiro Oudinot, por onde chegaríamos à Cambeia. Mais adiante, no Jardim do Oudinot, as árvores, que eram altas, impediam o vento de chegar à vela, pelo que a solução era os moços saltarem para terra e com uma corda (a cirga), puxarem eles a bateira pelo Esteiro fora, que tinha cerca de dois quilómetros de comprimento, enquanto iam conversando.

O marnoto, sentado no cagarete, ao leme, ia governando a bateira, para que não fosse contra as estacas de cimento, ou se desviasse demasiado para o meio do esteiro.
Um moço, já com idade, pequeno de físico mas rijo de nervos, pele tisnada pelo sol e também pelo vinho que diariamente ingeria, avistou um grupo de turistas sentados debaixo de uma árvore, no Jardim do Oudinot, a merendarem, refastelados…
— Querem ver? Diz o Gandarinho!
— …
— Anda, puxa, rápido, mais depressa… mais depressa senão o peixe foge todo…
E nós, toca a puxar, cada vez mais rápido, feitos parvos, sem saber o que ia naquela cabeça…
As senhoras do grupo de turistas levantaram-se e pediram para nós lhe vendermos o peixe que estávamos a pescar, que era fresquinho, e que elas ali mesmo o assariam para o seu pessoal. Mas o Gandarinho era só:
— Puxa, Puxa…
O marnoto, lá do seu cagarete, ainda intimou:
— Ó João, não é preciso tanta pressa. Mas qual quê!
O Gandarinho era só: — Puxa, Puxa…
Mais adiante, quando já não podia ser ouvido pelos turistas, o Gandarinho solta tamanha gargalhada, que o deixou da cor da pele de um tomate…
— Vês? Com papas e bolos se enganam os tolos…
— Aqueles viram uma bateira e logo pensaram que ia a pescar!
E isto, para ele, foi uma vitória… Só os “ricos” gozavam férias! E aqueles ali refastelados eram, para o Gandarinho, ricos…

Entretanto fomos andando e chegámos ao nosso destino. Agora era só passar por baixo de uma das “portas de água”, para poente, com cuidado, que elas eram de pedra. Passámos!
Lá estava o carro de bois à nossa espera. Descarregámos o sal e o carro seguiu para casa. Nós passámos novamente por baixo das portas de água, agora para nascente, onde se encontrava o moirão a que íamos amarrar a bateira. Lá chegados, passámos o cadeado à volta do moirão, e já nos preparávamos para regressar a casa, quando aparece o Cabo de Mar, (autoridade marítima) com poderes para tal, a perguntar pela licença do moirão! O meu pai foi à proa da bateira, e mostrou-lhe a licença.
— Não, diz o Cabo de Mar. Esta é a do moirão localizado junto ao Egas. Este moirão
precisa de outra licença…
— Mau, diz o meu pai zangado. A lei mudou?
— Mudou sim senhor,  diz a autoridade,  e você devia saber! Para não ser multado tem de apresentar a licença dentro de oito dias no “Posto”.
— Sim senhor. Assim farei! Cada moirão cada licença, sim senhor, disse entre dentes…
Mesmo sendo para a mesma embarcação…
— Só me faltava esta, ia resmungando:
— Faltar um dia à marinha por causa da porra de uma licença do moirão… E durante o resto da tarde, não falava noutra coisa…

À noite, à ceia, ele teve uma ideia!
— Ó Toino! Tu amanhã não vais à marinha. Pegas na bicicleta e vais a Aveiro à Capitania, tratar da licença do moirão, para a Cambeia. És capaz disso?
— Sou sim senhor! Disse eu, pensando no dia seguinte, em que não precisava de ir à marinha!
— Então, ficamos assim; A Capitania abre às nove horas, tu levas os documentos da bateira, que o registo é preciso. Vais lá de manhã e terás de lá voltar à tarde, que “eles” levam tempo a passar a licença. Perguntas quanto ela custa e à tarde pedes dinheiro à tua mãe e vais lá, pagas e levantas a licença!
Assim foi. Tratei de tudo como me foi ordenado e à tarde regressei, com a licença no bolso.
 Nem as duas viagens a Aveiro de bicicleta me custaram a fazer!
 Teria sido pior se tivesse ido à marinha naquele dia e tivesse andado a “alombar” com a canastra à cabeça…
Antes dos oito dias, a licença do moirão da Cambeia foi apresentada no posto do Cabo de Mar!

Ângelo Ribau Teixeira

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