DISCURSO DO ACTO DE POSSE DA DIRECÇÃO DA ADIG
Começo por dar uma visão retrospectiva da vida na Gafanha da Nazaré. A nossa terra emergiu de um areal imenso, inóspito e desprezado, fustigado pela nortada inclemente que aqui temos com fartura.
Em 1868 – altura em que por aqui já muita coisa havia mudado – Frederico de Moura, caracterizava assim o viver da nossa gente:
– “Com enxadões desmedidos fazem surribas que vão ao centro da terra! Nasce-lhes água sob os pés descalços e encardidos. E, só depois, é que vem a tarefa de incorporar na terra remexida, até ao tutano, o moliço arrancado do fundo gordo dos canais. Algas e peixe podre para enterrar, lodo para impermeabilizar o fundo da regadeira e aí está a comedoria que serviu de mantença ao milagre das Gafanhas.”
“Quem surriba chão de areia não encontra onde enterrar raízes de esperança (...)! Quem lança a semente num ventre que é maninho, não pode ter esperanças de fecundação. E, por isso, o gafanhão, antes de cultivar a lomba, teve de corrigir-lhe a esterilidade servindo-se da Ria, que lhe passa à ilharga, procurando nela a nata com que amamentou a semente que deixou cair, amorosamente, naquele chão danado. E humanizou a duna.” (Sic)
Mas nem só os homens amanhavam a terra, revolvendo a areia virgem. A mulher da Gafanha sempre foi uma moira de trabalho. Desde cedo se acostumou ao cabo da enxada, a rer o sal nas marinhas ao lado do marido ou trabalhando como uma galega nas secas. Mesmo grávida, continuava na sua labuta, incluindo alguns serviços mais pesados, como cavar e transportar adobes à cabeça, às vezes, ainda com os filhos pela mão.
Como vemos, em tempos pretéritos, os nossos avós viviam em condições de vida primária. As casas da Gafanha não tinham soalho: o chão das acanhadas divisões era coberto com junco ou bicas. Para se achar a dimensão mais adequada para o quarto, o dono da casa deitava-se ao comprido no chão, ficando ao critério do mestre a distância entre os pés e a parede, que desse para a mulher passar e deitar-se do lado de dentro, para ficar mais resguardada.
A cama não passava de uma esteira, colocada sobre o chão. Cozinhava-se, a lenha, numa divisão minúscula, quantas vezes com duas telhas levantadas a servir de chaminé, no meio de uma fumarada sufocante que punha as paredes e os pulmões negros como tições.
E assim, através de um punhado de famílias que viviam na miséria, quase a esmo, nasceu uma terra sui generis, próspera, que tem por ex-libris o Farol da Barra e o Jardim Oudinot, parque de lazer mais acolhedor que as gentes ribeirinhas têm por hábito visitar nos fins-de-semana soalheiros ou, aos milhares, no “Festival do Bacalhau”, na “Procissão da Ria” ou quando por aqui aproam os grandes veleiros.
A partir dos anos 50, a Gafanha agigantou-se e nem só os que por aqui nasceram contribuíram para isso. Os braços dos Meiras, dos Felizardos, dos Machados, dos Vales, ou dos Novais, que adoptaram esta terra, como sua, para viver, contribuíram para esse notável incremento. Vieram das regiões de Guimarães, Viseu, Fafe, Amarante e mesmo de outras bandas. E tudo assim pôde acontecer por a Gafanha da Nazaré, dos meados do século passado, ser uma terra acolhedora e ter “mais trabalho que gente”.
Hoje, a Gafanha, cidade prenhe de beleza e encantos, penetra-nos a alma com a sua luminosidade, embalsamada pelos cheiros provenientes da mata, da ria e do mar, que por aqui se entrelaçam, fazendo-nos respirar a plenos pulmões. Se a tudo isto juntarmos a beleza do Jardim Oudinot, sentimos viver num cantinho de sonho, antídoto para as nossas maiores canseiras.
Depois de nos termos debruçado sobre um bocadinho da nossa História e da beleza idílica da terra que nos acolhe, afloremos, por fim, o tema que aqui nos trouxe: a tomada de posse da Direcção da ADIG (Associação para Defesa dos Interesses da Gafanha da Nazaré).
Assim sendo, uma pergunta sacramental se impõe: como passará a funcionar esta nova ADIG? A esta pergunta respondemos: o nosso programa de acção apresenta várias inovações relativamente ao passado, podendo ser destacado o seguinte:
1). Divisão por núcleos de trabalho, destinados a dar apoio à Direcção, núcleos esses que passam pelas Artes, Cultura, Desporto, Promoção e Divulgação da cidade, Acção Social, Território e Ambiente, num total de quase 50 pessoas, se contarmos com os membros da Direcção e seus colaboradores;
2) Tentaremos recuperar o viver dos nossos antepassados, isto é, como brincavam e como viviam. E, caminhando nesse sentido, por que não recuperar os jogos da nossa meninice, fazendo-os disputar entre as Gafanhas dos concelhos de Ílhavo e de Vagos? Por que não haver Encontros Poéticos, Visitas de Estudo a Locais Típicos da Gafanha, Tertúlias, Festivais de Música, encontros de Grupos Corais e mesmo de música eslava, por já ser uma realidade no Portugal de hoje? Pretendemos promover, também, a criação do Hino da Gafanha?
3) Vamos procurar dar a conhecer o nome da Gafanha da Nazaré por esse país fora, ajudar a resolver problemas ambientais e geográficos ainda por solucionar.
4) Gostaríamos de sugerir à Edilidade ilhavense – aqui representada por um ilustre gafanhão, Eng.º Paulo Costa – que no futuro seja dado o devido relevo à Gafanha da Nazaré, quando na mancha geográfica da nossa freguesia ocorrerem eventos de vulto. Por exemplo, em vez de ser colocado no cartaz “Festival do Bacalhau/Ílhavo”, que o anuncia, fosse colocada a frase “Festival do Bacalhau do Concelho de Ílhavo”, dando assim mais abrangência ao concelho e o devido relevo à cidade onde realmente este Festival se realiza. Honra-nos pertencer ao concelho a que pertencemos, mas não abdicamos da nossa condição de gafanhões, quanto mais não fosse por aquilo que os nossos antepassados nos legaram.
A forma como certos edis têm agido para connosco, relativamente ao escamoteamento voluntário do nome da nossa cidade, deixa-nos muito magoados e tristes. Chega a parecer que a autarquia se sente algo embaçada – para usar um termo gafanhão – em dar a conhecer, a quem nos visita, o nome da Gafanha da Nazaré, cidade que ao longo de vários decénios muito tem contribuído para a valorização do nosso concelho, sendo mesmo considerada pela CMI, mesmo não o referindo, a sua grande sala de visitas. É esta...a única consolação...que vamos tendo!
Resta-nos agradecer, em nome da ADIG e do povo da Gafanha, aos homens e mulheres de rija têmpera, que Deus levou, e que ousaram viver em condições de vida dir-se-ia inaceitáveis, para nos fazer crescer até onde crescemos; aos homens que no mar-fundo granjearam o pão que pôde dar nova vida à nossa terra; agradecer às canseiras das mulheres da Gafanha que, durante muitos anos, desempenharam a dupla e difícil missão de terem sido mães e pais em simultâneo, por os seus maridos andarem ao mar, ou até por lá terem encontrado a sua sepultura; agradecer, igualmente, às digníssimas autoridades, aqui presentes, e aos digníssimos concidadãos que fizeram o favor de se aliar a este acto com tanta simplicidade, mas de tão grande simbolismo para a nossa terra.
A todos, em nome da ADIG, um bem-haja
Júlio Cirino
(Presidente da ADIG)
1 comentário:
Ouvi partes da entrevista à Rádio terra Nova e gostei do que ouvi.
Pensei que desse repetida no fim de semana mas não consegui ouvir.
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