terça-feira, 11 de novembro de 2008

Coisas dos nossos “intigos”

:
O Regueirão, com o moinho do ti João Conde à vista

Falar de qualquer terra, é uma coisa vulgar, pouco nos dirá. Falar da nossa Terra, é diferente. E, sem esforço, estamos a puxar a água para o nosso moinho. Lembro-me que, em criança, andando a vaguear pela Ria, ali pelo Regueirão, na Marinha Velha, havia um sítio a que nós chamávamos o Moinho – e lá estavam ainda os restos da construção: pedaços de adobos, telhas quebradas… Teria sido mesmo um moinho? – Assim no-lo atestava a nossa imaginação e uns restos de tradição oral. Mas seguindo por um rego que derivava para terra, lá bem na estrada, surgiu mesmo um “moinho” a sério, mas movido a electricidade, creio que era do ti João Conde. (De uma vez fui lá trocar milho e resolvi ir de bicicleta. À volta, no Zé da Branca, dei o maior trambolhão da minha vida. Ainda não dominava bem a “burra”, pois aprendera a andar nessas férias, para ir para o liceu… Amigos, senti-me voar, até me faltou o ar na descida tão brusca… e dei comigo no fundo da valeta!) Falava eu de moinhos…
Recordo que aí, como aliás noutros sítios, as mulheres usavam lenços na cabeça. E pelos lenços (e também pela roupa) sabia-se o estado da mulher – viúva, casada, marido ausente, marido a chegar, solteira comprometida, solteira,…, “filha de Maria”,… O lenço funcionava como as bandeiras da praia. E havia-os de vários tecidos… Rico tema para um estudo a sério…
Para os da minha geração vou lembrar-lhes algo que me ficou registado e agora cá está. As mulheres andavam normalmente de lenço. Mas com a evolução, algumas começaram a cortar o cabelo, etc. e tal… Quantos comentários se ouviram!... Seria mais um sinal da “emancipação” da mulher… Apareceram, com mais profusão, os mantos, mantilhas e véus, para “ver o Senhor”. E alguns eram mesmo bonitos e bem trabalhados. Mas o pior era quando se esqueciam dele em casa. Era obrigatório a cabeça da mulher estar coberta na igreja. Como resolver? - Ó João tens aí o teu lenço? - Para quê? - Dá cá, home, esqueci-me do véu em casa. E com aquele sem-cerimónia característico, ei-la que entra na igreja com o lenço “tabaqueiro” pousado na cabeça!... Onde havia lenços bonitos – onde estais! – era nos ranchos que se formavam quando havia Cortejos de Reis ou pelo Carnaval. 
Não há dúvida que as raparigas tinham brios nos seus lenços. E era vê-las de prendas à cabeça ou à volta do ti Armando Ferraz para ensaiar a dança do encadeado. Imagens e figuras de um passado recente que muito caracterizam a vida da Gafanha… 
O ti Armando ensaiava os seus ranchos e, no “defeso“, entretinha-nos com os robertos… Páginas ainda vivas da história popular… Onde também se notava o lenço era quando se levava o jantar aos que trabalhavam – nas terras, nas obras, nas secas ou nos estaleiros (do Mónica ou do Mestre Silvério. Neste era engraçado: os homens tinham de atravessar a Ria, para vir comer à sombra das tramagueiras que ladeavam a estrada que ia para Aveiro!) 
Perto da hora do meio-dia era uma azáfama para não fazer esperar os “moiros do trabalho”. Agora não será assim, mas era um costume que tinha raízes profundas e talvez não fosse mau para a saúde… Comida fresquinha, a fumegar! E aos Domingos? Em certa altura, ali no caminho que ladeia a igreja e conduz ao cemitério, surgiu um mercado domingueiro. Terão sido os irmãos Matias, de Vilar, (e peço-vos licença para os saudar, pois somos amigos de longa data!), os primeiros a trazer as suas batatas para vender à saída da Missa. E pegou… De tal forma que depois se teve de arranjar local mais apropriado e agora aí tendes o “mercado”… Também, nas vendedeiras, se podiam apreciar lenços bonitos!... E não é que, de lenço em lenço, me lembrei do jogo que ainda se usa mas que nesses tempos estava muito em voga – o jogo do lencinho-lenção!... 
Outros lenços, como é lógico, que nada tinham a ver com os da cabeça. Mas quantas histórias belas nos poderiam contar estes lencinhos, mais ou menos bordados, que eram o esmero das raparigas e o “ai-Jesus” dos rapazes! É que, na época própria, quando a idade isso pedia, a rapariga deixava cair o lencinho que o rapaz, de olho vivo e mão ligeira, apanhava e… Começava o romance! 
Não sei o que as raparigas hoje “oferecem” aos “romeus” – ou o que recebem… - mas então a primeira oferta era o… nome, depois o lenço, depois a fotografia e, só mais tarde, a mão! E quantas vezes tudo terá começado pelo lenço caído! Se um dia fizermos um museu – tardará muito? – reservemos um espaço para uma colecção de lenços, o que até nem será inédito… Será um património a guardar o que muito nos poderá ensinar dos nossos “intigos”, ou melhor das nossas “intigas”… E por hoje, deixem que vos saúde com o meu chapéu – que tenho de pedir emprestado. - Até mais ver! 

Manuel Olívio da Rocha 

NOTA: Este texto, do gafanhão de quatro costados e meu particular amigo Manuel Olívio da Rocha, encontrei-o há dias num boletim que preparei, em 1985, para as celebrações das Bodas de Diamante da criação da Gafanha da Nazaré, promovidas pela Junta de Freguesia, presidida, na altura, por Manuel Gandarinho Lopes. 
Porque se trata de um naco saboroso da história do nosso povo, aqui o ofereço aos meus leitores. Já lá vão, pois, 23 anos desde que o Manuel o escreveu. E tenho cá um palpite que ele nem se recordará deste seu escrito, que reputo de delicioso. 
Para ele, também, um abraço, com saudades desses tempos.

FM 

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